A cultura escolar da igreja protestante

De como “esconder a palavra no coração”

imagem: Tiago Pereira

Esta crônica foi selecionada pela Úrsula a partir da dissertação de mestrado “Narrar a experiência da escola: um ensaio poético filosófico à luz da teoria da experiência e da narração de Walter Benjamin”. Veja a seleção.


Para muitas crianças a igreja evangélica se torna uma segunda escola.

Quando chegam as férias de julho e os portões da escola pública se fecham é tempo da EBF – Escola Bíblica de Férias. Ao longo de uma semana inteira, muitas crianças vão até a igreja do bairro para ouvir histórias, encontrar outras crianças, ganhar um lanche e passar a tarde entre brincadeiras e outras atividades.

Uma criança de cinco anos, de joelhos no chão da igreja, apoiava sobre o banco comprido de madeira a folha sulfite com um desenho mimeografado de algum personagem da história que acabara de escutar. Coloria. Um pote de achocolatado sem o rótulo aparava o conjunto de lápis de cor sobre o banco para as crianças de várias idades dividirem entre si. Era o momento de colorir o desenho da história, enquanto o CD da “Turma do Print” tocava alto nas caixas de som. Os bancos de madeira da igreja fora seu irmão bem mais velho que fizera, era marceneiro.

Um menino de uns nove ou dez anos, reparava naquela criança pequena pintando, e começou a rir, gesticulando: “Nossa, você tá pintando tudo errado…”, e então mostrando seu desenho explicou que ficava mais bonito se você deslizasse o lápis apenas numa direção, ou em movimentos circulares curtos. “Não aperta tanto o lápis”. Era a primeira vez que alguém lhe ensinava a pintar, a primeira vez que reparava na mecânica do gesto de colorir.

O desenho na folha era de um pião, o velho brinquedo que se lança ao chão repuxando com um barbante, fazendo girar na ponta de um prego. A criança pequena se lembrava da febre dos piões em casa, cada um pintando o seu com guache, personalizando seu próprio brinquedo clássico de madeira, lembrava que o do seu irmão ele pintara nas cores do reggae, como ele mesmo lhe explicou. O personagem da história era um pião de madeira e não Jesus na cruz porque a narrativa daquela tarde era uma alegoria. Na estória um pião, brinquedo muito querido de uma criança, caíra no fogo de uma lareira, e a criança que amava seu brinquedo, pôs a mão no fogo para resgatar o pião. Assim se passava com simplicidade à mensagem bíblica da salvação, do sacrifício, do amigo Jesus que pôs a mão no fogo por você criança. Escutavam as crianças brasileiras naquele auditório, mesmo não estando acostumadas com lareiras, pois o material daquela alegoria era importado de uma associação cristã estadunidense, fortemente presente nas referências dos trabalhos educativos das igrejas protestantes daqui.

Entre alegorias, desenhos e pipoca, havia também o momento do versículo do dia, sempre muito bem selecionado e estampado em cartazes decorados. As tias da EBF conduziam a leitura em voz alta, várias vezes ao longo da tarde. Tratava-se de uma nítida atividade de memorização, e os campeonatos e gincanas estavam lá para estimular o hábito de esconder a palavra no coração. No quinto e último dia da EBF fazia-se uma fila de crianças à frente da igreja para recitar de cor no microfone os cinco versículos memorizados ao longo da semana, e então ganhava uma lembrancinha.

A Escola Bíblica de Férias, contudo, é um evento anual e, dentro do universo evangélico, seu principal objetivo é alcançar exatamente aquelas crianças que ficam “carentes de escola” no recesso de julho, e que não são frequentadores da igreja; crianças que, não só elas, mas também suas famílias podem ser convencidas daquela fé e prática religiosa, e quem sabe incluídas no rol de membros da igreja. Esse objetivo é claro. Mas o que se passa, o que acontece mesmo, por vezes é obscuro ou enevoado.

Muitas crianças acabam frequentando religiosamente, e apenas, a EBF, mas nunca chegam a se inserir na igreja, tampouco suas famílias. Aquele menino com seus nove ou dez anos, que conversou com a criança pequena sobre o gesto de pintar com o lápis sobre o papel era uma dessas crianças que somente ali, naquele evento, a menina iria encontrar. Seus coleguinhas que frequentavam a igreja e o cultinho todo domingo à noite nunca haviam comentado sobre seu jeito de colorir os desenhos.

Mais tarde, quando aquela criança chegou à pré-escola e se deparou com a sala de aula muito semelhante às salas do cultinho de todo domingo à noite na igreja, com suas mesinhas de quatro cadeiras, papéis e potes de giz colorido, ela se lembrou de que já sabia pintar e, quem sabe até mesmo, já sabia ler a maioria das palavras.

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